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"Feita a mão" e com carinho, Kombi vira monumento e deixa saudades na VW

Leonardo Felix

Colaboração para o UOL, em São Paulo (SP)

29/01/2014 15h53

Era 19 de dezembro de 2013. Antes mesmo do fim do expediente rotineiro, os funcionários da linha de montagem da Kombi já divulgavam, em redes sociais, imagens da última unidade da perua montada na fábrica da Volkswagen em São Bernardo do Campo (SP). Colado ao parabrisa dianteiro, um cartaz mostrava a numeração do chassi (EP 022.526) e a frase "Última Kombi produzida em 2013".

Última Kombi - Sampa Kombi Clube/Reprodução - Sampa Kombi Clube/Reprodução
Última Kombi fabricada em 2013 (branca) e uma personalizada pelos operários
Imagem: Sampa Kombi Clube/Reprodução

Apesar do tom otimista da mensagem, dando a entender que outras Kombi ainda seriam feitas no ano seguinte, o clima era de despedida. Afinal, o Contran (Conselho Nacional de Trânsito) já havia dito não à proposta deabrir uma exceção para a vanna nova legislação que tornou obrigatórios airbags e ABS em todos os carros produzidos no Brasil a partir de 2014 (itens que a estrutura da perua não comporta).

A Kombi em números

  • 1,5 milhão

    de unidades feitas no Brasil.

  • R$ 46.076

    valor da versão mais barata (Furgão) ainda à venda. Limitada e esgotada, série Last Edition custou R$ 85 mil.

  • 1957

    início da produção no país.

  • 30

    cv no motor da primeira versão, 1.2, gasolina, refrigerado a ar.

  • 80

    cv, com etanol, no motor da última versão, 1.4 flex.

    Naquele momento, o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC continuava com esperanças de conseguir uma brecha junto ao governo federal, mas os 950 responsáveis pela sua produção no fundo sabiam que, após 56 anos de absoluta resistência às evoluções do setor, a Kombi estava mesmo prestes a chegar à (necessária e merecida) aposentadoria.

    MONUMENTOS
    Para não deixar aquele momento histórico da indústria automotiva brasileira passar batido (afinal, foram 56 anos em nosso mercado), o gerente de produção da Kombi reservou duas das últimas unidades fabricadas para prestar homenagens aos operários da linha de montagem. Numa delas, foram coladas fotos de todos os envolvidos no processo; na outra, eles puderam gravar assinatura e número de registro na empresa.

    UOL Carros apurou que essas Kombis continuam expostas nas instalações da Volkswagen em São Bernardo (embora a empresa não confirme isso), tornando-se objetos com nova aura para homens que se acostumaram a montar dezenas de veículos iguais todos os dias. Já a última unidade da Last Edition, série especial de despedida, foi para o museu de veículos comerciais da marca, na Alemanha.

    Um desses funcionários é Milton Domingos Leite, que atuou no setor de acabamento e pintura da Kombi nos últimos cinco anos. "Foi muito triste. O pessoal todo estava bastante abalado e foi uma dor grande ver a linha de montagem totalmente esvaziada após a produção da última unidade", contou a UOL Carros.

    A gente gostava do processo, porque era mais artesanal. Eu trabalhava com a parte de pintura e, quando entrei na Volkswagen, achei que seria praticamente tudo feito por robôs, mas não."

    "A pintura da Kombi ainda era feita num processo manual, mesmo. A gente que aplicava os sprays de tinta na carroceria", disse Leite, que chegou a trabalhar em 130 peruas num mesmo dia.

    Outro trabalhador que guarda forte ligação com a Kombi é Valdeci Arrais. Empregado da Volks desde 1989, ele atuou na montagem do trem-de-força da perua por 21 anos, passando inclusive pelo processo de transição dos motores refrigerados a ar pelos de arrefecimento líquido.

    Atualmente, Arrais trabalha na área de estamparia; por isso, participou apenas indiretamente na produção das últimas Kombi. Mesmo assim, teve sorte de ser chamado para fazer parte do derradeiro grupo de funcionários a receber convite da montadora para acompanhar a fabricação das unidades finais.

    "Foi uma visita bastante emocionante. Ficamos contentes por ter participado de um momento histórico e ver como é o processo inteiro. Mas, por outro lado, vimos que os operários estavam bastante tristes e apreensivos com a incerteza sobre o que iriam fazer no futuro", relatou.

    Última Kombi - Sampa Kombi Clube/Reprodução - Sampa Kombi Clube/Reprodução
    Outra das últimas peruas recebeu assinaturas dos funcionários; ambas viraram monumentos
    Imagem: Sampa Kombi Clube/Reprodução

    DE PAI PARA FILHO
    A relação de Valdeci Arrais com a Kombi remonta à infância, por causa de seu pai, que era um apaixonado pelo modelo. E foi essa proximidade que o fez adquirir, há seis anos, uma unidade de 1973, que originalmente pertencia a um ferramenteiro. Ainda ostentando a pintura original, o utilitário azul e branco nunca havia trocado de mãos e já era um velho conhecido de sua família.

    "Soube dessa Kombi por indicação de um amigo, mas nem tinha interesse em comprar. Fui só visitar, a pedido dele, para ver seu estado. Quando cheguei lá, gostei muito. Aí descobri que o dono tinha conhecido familiares meus, inclusive meu pai, já falecido, pois nossa família morou perto dali. Contei a um tio, e ele falou: é a Kombi do seu Olavo", lembrou Arrais. Então, seu tio fez a revelação: "Era a Kombi mais bonita da região, e seu pai [de Arrais] gostava muito dela, sempre ficava admirando".

    Última Kombi - Sampa Kombi Clube/Reprodução - Sampa Kombi Clube/Reprodução
    Não tem como esquecer: uma das últimas Kombi foi estampada com fotos de funcionários
    Imagem: Sampa Kombi Clube/Reprodução

    NOVOS RUMOS
    Quando o governo federal sinalizou a possibilidade de abrir exceção para a Kombi na obrigatoriedade de airbags e ABS, uma das justificativas seria preservar os cerca de 4 mil empregos gerados direta e indiretamente com a produção da Kombi.

    A Volks não quis se pronunciar oficialmente sobre o assunto, mas sabe-se que ela tenta reaproveitar a mão-de-obra da extinta perua em outros setores da fábrica -- como no caso de Milton Domingos Leite, que agora atua na pintura e acabamento do Gol e da Saveiro. A montadora também deu férias coletivas, no último dia 13, para 500 funcionários ainda sem destino certo, enquanto estuda se, e para onde, irá realocá-los.

    O Sindicato do ABC afirma ter um acordo com a fabricante, de dois anos atrás, que dá estabilidade a esses profissionais até 2017, mas não garante que a marca poderá cumpri-lo até o final. Aliás, uma semana antes do encerramento da produção da Kombi, a fabricante iniciou um Plano de Demissão Voluntária voltado a todos os setores da fábrica de São Bernardo, não apenas ao da Kombi (mas que também teve reflexo junto a montadores da antiga linha da perua).

    Um deles é Alexandre Marcato, que trabalhava desde 2008 na montagem do modelo. Ele negou que sua saída tenha sido motivada pelo fim de vida útil da Kombi, e disse que aproveitou a oportunidade para focar em seus estudos. De qualquer forma, a perua também deixa saudades: "Sempre gostei muito de trabalhar com a Kombi. Sou um apaixonado por carros antigos, e acabei pegando carinho por ela", contou.