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GM enfrenta CPI, crise de confiança e pode sucumbir em "caso Cobalt"

Eugênio Augusto Brito

DO UOL, em São Paulo (SP)

04/04/2014 11h40Atualizada em 07/04/2014 14h02

A crise que a General Motors enfrenta nos Estados Unidos tem uma dimensão que o brasileiro talvez não perceba, porque envolve principalmente um modelo desconhecido por aqui -- apesar do nome, o Chevrolet Cobalt dos EUA não tem nada a ver com o nosso.

Se fosse transplantado para o Brasil, o problema que a GM encara por lá teria o mesmo peso, por exemplo, que uma megacrise envolvendo milhões de carros da Fiat, líder local de emplacamentos ao longo de quase todo este século -- e justamente seus modelos voltados ao público popular e jovem.

Chevrolet Cobalt Sedan 2005 - Divulgação - Divulgação
Cobalt: feito no começo do século para atrair motoristas jovens e com pouco dinheiro, anti-Civic da GM agora rende falhas e multa
Imagem: Divulgação
Na virada do milênio, todos falavam em "novos tempos, novos valores, novos carros", mas a GM dos EUA tinha uma linha antiga, ainda que forte. O americano compra mais picapes (como a linha Chevrolet Silverado) e sedãs grandes (lá considerados médios), mas motoristas mais jovens, com menor poder aquisitivo e que estão atrás de seu primeiro carro, ou famílias que buscam um segundo veículo, optam por sedãs médios (compactos para eles).

O domínio neste segmento, desde aquela época, era das orientais Honda e Toyota, mas a dupla Rick Wagoner (o então todo-poderoso presidente global da GM desde 2000, e que também presidiu a GM do Brasil) e Bob Lutz (chefe global de produtos) havia encontrado seu "matador-de-Civic": fácil e barato de fazer, o Cobalt venderia muito e ainda permitiria derivações para praticamente todas as marcas do grupo. Afetados também foram o retrô Chevrolet HHR, os Pontiac G5, Pursuit e Solstice, e os Saturn Ion e Sky.

Sete modelos que somam cerca de 2,5 milhões de emplacamentos (o número inicial era de 1,3 milhão de carros, mas os dados têm subido a cada semana), pouco mais de 30 acidentes comprovados, 13 mortes e um recall gigantesco.

A CHAVE CAIU
O drama começou silenciosamente, quando uma fornecedora fez peças menos resistentes e mais frouxas para o sistema de ignição desses carros; elas não suportavam o peso da chave presa a um chaveiro carregado. Mas a GM decidiu dispensar o recall, preferindo enviar um boletim informativo às concessionárias e oficinas: qualquer cliente que reclamasse do defeito deveria ter a peça trocada e sem custos. E fim.

Mas, anos depois, surgiram fatos novos: acidentes de trânsito tidos como casos de imperícia de motoristas jovens e inexperientes teriam sido provocados pelo problema na ignição. Como a chave perdia contato ao passar pelos buracos da estrada, o carro desligava e o motorista perdia o controle de volantes e pedais. As mortes eram, portanto, de responsabilidade da montadora, que temendo a repercussão negativa da omissão, finalmente resolve fazer o recall de todas as unidades, com dez anos de atraso.

Este é o problema enfrentado pela GM nos EUA. A gigante líder de mercado naquele país, que foi a maior montadora do mundo em 2012 (menos de três anos após ressurgir da quase falência em 2008/09), está sendo acusada de mascarar um recall com modelos de muita procura e vendidos a pessoas jovens -- por pura ganância.

Daí a preocupação da imprensa, do Congresso americano e do mercado como um todo. Suspeita-se que tudo foi feito para que o preço de ações não caísse, já que a marca enfrentava um momento crucial de mudança de rumo e de produtos.

CONGRESSO: ALGUÉM MENTIU
É nítido como a paciência -- ou companheirismo -- do americano com a GM diminuiu na última semana. Até o final de março, tudo ia bem: o recall gigante mal era divulgado e a imprensa preferia falar do puxão de orelha dado pela Procuradoria Geral americana na Toyota -- com direito a frases duras ("A Toyota mentiu") e multa bilionária. A eterna briga dos EUA com os japoneses "infiltrados" em seu país...

Vítimas Cobalt americano - J. Scott Applewhite/AP - J. Scott Applewhite/AP
Processos de familiares de vítimas fatais podem ser julgados na California; Estado condenou Toyota em 2011 por negligência em recall
Imagem: J. Scott Applewhite/AP
A gota d'água, porém, foi a descoberta de que motoristas jovens morreram -- e sem meios de defesa, uma vez que era impossível controlar os carros -- em virtude do que parece ser ganância corporativa. Ânimos mudaram e o Congresso montou uma CPI para a GM explicar o ocorrido e convocou a atual presidente da GM, Mary Barra (primeira mulher no planeta a assumir um cargo desta envergadura na indústria automotiva), a depor. Segundo a imprensa, foi um discurso seguro e tranquilo. Mas que não melhorou o ânimo deputados e senadores.

"Você não sabe de nada sobre coisa alguma!", atacou a senadora democrata Barbara Boxer (Califórnia) em um momento do depoimento de Barra, informou a agência Automotive News na última quarta-feira (2). Barra afirmou aos congressistas que não sabia exatamente como as decisões eram tomadas á época, mas deixou claro, em mais de uma oportunidade, que não concordava com o procedimento da "velha GM", que se desculpava pela companhia e que a "nova GM" irá encontrar uma forma de compensar vítimas de acidentes e donos prejudicados.

Outra senadora, Claire McCaskill (Dem./Missouri), acusou o engenheiro-chefe da GM à época, Ray DeGiorgio, de ter mentido sobre seu real papel e ações tomadas no caso em meados da década de 2000. DeGiorgio também prestou depoimento à Casa esta semana e comandou a equipe que revisou as ignições em 2004 e em 2006 para definir se a empresa deveria ou não fazer um recall. Pelo que se sabe agora, a fabricante de autopeças Delphi fez ignições fora do padrão de fábrica e DeGiorgio comandou um processo para adaptá-las aos carros, quando o correto talvez fosse recusar o lote.

"Ele escolheu esconder em vez de divulgar", disse a senadora, referindo-se a DeGiorgio e às ignições com problema. "Ele mentiu", afirmou, desta vez sem citar o nome do engenheiro.

O Congresso americano já avisou que pretende ouvir outros engenheiros e executivos da GM e que pode cobrar um novo depoimento de DeGiorgio e Mary Barra. Cresce ainda a chance da Casa aprovar uma mudança na lei para elevar o valor da multa que a GM pode ser obrigada a pagar por ter postergado a divulgação de um caso de recall.

Além disso, é grande a chance de as ações criminais movidas pelas famílias das 13 vítimas fatais serem julgadas na Califórnia, pela mesma corte que determinou que a Toyota deveria indenizar as famílias dos acidentados pelo recall de tapetes/aceleração involuntária entre 2010 e 2011.

GM ADMITIU FAZER CARROS RUINS EM 2008
Os termos "velha GM" e "nova GM" usados acima estão sendo divulgados novamente pelos advogados da empresa numa tentativa de escapar de punições pesadas. Pelo acordo feito com a Casa Branca, em 2009, a empresa que emergiu da falência não poderia ser culpada de casos ligados à administração anterior.

Richard Wagoner, presidente da GM até 2008 - Reprodução/Auto Evolution - Reprodução/Auto Evolution
"Quebramos a confiança de vocês ao deixar nossa qualidade cair abaixo dos padrões do setor", admitiu a GM à época de Wagoner, presidente até 2008 e um dos mentores da criação do Cobalt
Imagem: Reprodução/Auto Evolution
Wagoner, por exemplo, deixou a presidência da montadora naquela época por exigência direta do presidente Barack Obama. Desde então, o clima de dança das cadeiras tomou conta da presidência: Frederick Henderson, (março a dezembro de 2009), Edward Whitacre (dezembro de 2009 a setembro de 2010) e Dan Akerson (setembro de 2010 a janeiro de 2014) passaram pelo cargo ocupado agora por Mary Barra.

Os congressistas americanos, porém, começam a achar que se os presidentes mudaram a atitude da empresa permanece a mesma.

UOL Carros não sabe apontar se a atual presidente foi informada ou não da decisão da equipe de Wagoner de esconder as falhas na linha do Cobalt americano. Mas podemos lembrar um fato importante: em 2008 a GM em crise admitiu publicamente que estava fazendo carros ruins. Na reportagem "Em anúncio, GM diz que 'traiu' consumidores com qualidade inferior", comentamos o comunicado de página inteira publicado pela GM na edição impressa da Automotive News. Vendendo pouco e perto de quebrar, a empresa decidiu usar de uma "fraqueza incomum", como dissemos à época. Vale reproduzir novamente um trecho ressaltado:

GM admite fazer carros ruins - Reprodução - Reprodução
Anúncio da GM ocupou página inteira no respeitado Automotive News em 12/2008
Imagem: Reprodução

"Ainda que continuemos sendo a líder de vendas nos Estados Unidos, reconhecemos ter desapontado vocês", diz o anúncio da GM. "Às vezes quebramos a confiança de vocês ao deixar nossa qualidade cair abaixo dos padrões do setor, e nossos designs se tornaram sem brilho".

Veja o anúncio na íntegra

Seis anos atrás, a impressão (de UOL Carros, da Automotive News e do consumidor em geral) era de que a empresa admitia a culpa por fazer carros feios e de acabamento pobre, apenas. Agora, fica mais e mais nítido que se o público não sabia ao certo o porquê das desculpas, a GM sabia muito bem porque se desculpava. E não era apenas por questões de visual ou acabamento.

As vendas da GM nos EUA foram extraordinárias em março deste ano, segundo balanço divulgado na última semana. Recordes impostos em 2007, antes da crise econômica, foram batidos. Mas tudo isso reflete o mercado antes da atual quebra de confiança. O que toda a imprensa (e o mundo) se pergunta agora é: a GM vai sobreviver a mais esta crise? Mais: uma empresa pode agir como a GM parece ter agido neste caso?