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Empregados de montadoras negam tortura, mas relatam demissão e perseguição

Helicóptero da polícia sobrevoa assembleia de metalúrgicos no ABC, em 1980 - João Bittar/Reuters
Helicóptero da polícia sobrevoa assembleia de metalúrgicos no ABC, em 1980 Imagem: João Bittar/Reuters

Em São Paulo (SP)

05/08/2014 18h10

A Reuters entrevistou dez pessoas cujos nomes aparecem na "lista negra" dos funcionários de montadoras de veículos envolvidos em atividades que a ditadura militar (1964-1985) considerava subversivas -- como participar do movimento sindical. Os documentos estão com a Comissão Nacional da Verdade e foram revelados pela primeira vez à agência. A maioria dessas pessoas relatou ter sido despedida pelas empresas no início dos anos 1980, na época que o documento apareceu. Alguns disseram que foram presos pelo menos uma vez, às vezes em piquetes. A maioria relatou problemas para encontrar trabalho mais tarde.

Nenhum dos trabalhadores disse ter enfrentado tortura ou prisão prolongada nos anos após o surgimento da lista. Isso condiz com relatos de historiadores de que as táticas mais duras dos militares cessaram em grande parte em meados da década dos anos 1970, com grupos guerrilheiros armados diminuindo em número e generais mais moderados ganhando influência.

Manoel Boni, 59 anos, disse que foi demitido pela Mercedes-Benz depois de participar de uma greve em 1980. Nos anos que se seguiram, ele se candidatou repetidamente para trabalhar como torneiro mecânico em outras montadoras fora de São Paulo, incluindo algumas fábricas que tinham vagas para essa função.

As empresas se recusaram a contratá-lo. Boni disse que dependeu, por longos períodos, de ajuda da igreja ou da assistência de amigos. Ele finalmente encontrou trabalho numa pequena fábrica perto do centro de São Paulo. Quando viu a lista da CNV à qual a Reuters teve acesso, Boni disse: "Meu Deus, meu Deus".

"Setor 381", disse ele, lendo em voz alta a anotação manuscrita ao lado de seu nome. "Sim, isso era a inspeção de qualidade, onde eu trabalhava." Ele ficou em silêncio por um longo período, lendo outros nomes no documento. "Muitas coisas fazem sentido agora", disse ele, finalmente.

Keiji Kanashiro, 70 anos, foi assessor econômico para a Mercedes-Benz antes de perder o emprego em 1980. Nos anos seguintes, ele disse que muitas vezes enviou 20 currículos por semana, sem sucesso. Uma vez, se reuniu com um representante de recursos humanos de uma outra grande montadora estrangeira na Grande São Paulo. "Ele me disse: você está numa lista, e nunca mais vai trabalhar no setor privado de novo", afirmou Kanashiro.

Nem todos na lista tiveram essas experiências ruins. Geovaldo Gomes dos Santos, que trabalhou na prevenção de acidentes para a Volkswagen, disse que sentiu como se seus chefes estivessem tentando empurrá-lo para fora da empresa no início dos anos 1980. Ele continuou no trabalho mesmo assim e, finalmente, se aposentou em 2003.

De todo modo, tem lembranças vívidas daqueles anos duros. "Se você apoiou o sindicato, era tratado como um inseto", disse. "Eu gostaria de ver alguma justiça pelo que aconteceu com os outros."

COMO PUNIR?
A grande questão que paira sobre o trabalho da Comissão Nacional da Verdade é qual tipo de justiça é possível de ser feita. Diferentemente de alguns outros países na América do Sul que passaram por ditaduras durante a Guerra Fria, o Brasil nunca tinha visto um esforço assim para investigar abusos graves.

Isso acontece -- em parte -- porque o regime militar do Brasil matou muito menos pessoas do que seus pares regionais. A ditadura na Argentina, apenas entre 1976 e 1983, matou até 30 mil pessoas, cerca de 100 vezes o número de mortes no Brasil, e num país com cerca de um quinto da população brasileira. O regime militar brasileiro também foi capaz de negociar uma anistia abrangente para proteger os seus líderes da acusação antes de entregar o poder de volta aos civis em 1985.

Como resultado, alguns juristas são cautelosos sobre as chances de processos judiciais bem-sucedidos. "Em tese, se uma empresa contribuiu ou se beneficiou da violação de direitos humanos, ela pode ser responsabilizada", disse o procurador regional da República e especialista em direitos humanos Marlon Weichert. O Ministério Público é um órgão que poderia iniciar ações judiciais com base em conclusões da CNV.

Weichert disse que os resultados da CNV são importantes, mas ressaltou que ele precisa ver a prova completa antes de dizer se e como um processo contra as empresas poderia ser fundamentado.

No ano passado, o Ministério Público da Argentina apresentou acusações criminais contra três ex-executivos da Ford, que supostamente deram nomes, endereços e imagens de trabalhadores para as forças de segurança do país durante a ditadura. Alguns desses trabalhadores foram presos e torturados. Os três negam as acusações e se declararam inocentes. O caso ainda tramita na Justiça argentina.

No Brasil, a CNV pode convocar ou convidar as empresas que aparecem com mais frequência na "lista negra" para dar a sua versão da história já nas próximas semanas, disse Sebastião Neto, que está supervisionando a investigação sobre as companhias.