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UOL Carros mostra como este "Frankenstein" sobre rodas virou o Nissan Kicks

Leonardo Felix

Do UOL, em São José dos Pinhais (PR)

17/11/2017 10h00

"Especial - Como nasce o carro, capítulo final": como o modelo sai do protótipo inicial para o carro que você compra

Até agora UOL Carros te ensinou como se calculam os custos, realiza o desenvolvimento em laboratório e até como se define o visual do carro. É hora de contar como funciona a parte final de criação: os testes práticos nas pistas fechadas e nas ruas. Afinal, por mais que computadores e robôs adiantem como será o comportamento de um carro, ainda é necessário provar na vida real se o modelo vai mesmo atender àquilo que foi proposto.

Nenhuma fabricante abre mão disso ainda: a experiência humana ainda é fundamental no ato de se criar um carro, até porque o comprador é... humano.

Nos dois anos finais de desenvolvimento, é hora de um equipamento bizarro ganhar vida: a "mula". A mula é um veículo que utiliza a base definitiva, porém com carroceria de outro carro. Isso ocorre justamente porque os moldes de confecção das novas peças ainda não estão prontos. A função da mula é chegar aos dados finais para esta confecção. 

Depois, conforme o projeto avança, os protótipos com desenho definitivo são colocados para rodar. Juntos, mulas, protótipos e carros de validação final rodarão até 600 mil quilômetros. Objetivo é homologar componentes, calibração de motores e suspensões, durabilidade ou verificação de dinâmica de condução, rigidez torcional, ruídos, conforto e ergonomia. No fim, são esses testes que ensinarão à fabricante como fazer seu novo carro tão perfeito quanto possível.

Vamos detalhar como funciona esta parte final de desenvolvimento usando como exemplo o Nissan Kicks, SUV compacto desenvolvido pela Nissan por cerca de quatro anos. A fabricante mantém sigilo sobre o início do projeto, mas é possível afirmar que a ideia de fazer um modelo com tais características já existia desde 2012, quando a marca apresentou no Salão de São Paulo o conceito Extrem. O Kicks mesmo só foi lançado em nosso mercado em agosto de 2016.

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Mosaico das duas fases de conceito do Nissan Kicks - Murilo Góes/Folhapress/Arte UOL Carros - Murilo Góes/Folhapress/Arte UOL Carros
As duas fases conceituais do Kicks: a primeira, de 2012 (à esquerda), quando o suvinho ainda era um desajeitado esboço denominado Extrem; a segunda, de 2014 (à direita), já com o nome definitivo e mais próximo da realidade
Imagem: Murilo Góes/Folhapress/Arte UOL Carros

Estágio 1: as mulas

Prioridade óbvia é simular as condições de uso em circuitos privados, longe dos olhos curiosos de consumidores ou jornalistas, mas chega uma hora em que é inevitável ter que sair com um protótipo em uma via pública. Portanto, quando um veículo desses, cheio de camuflagens, é flagrado, pode ter certeza que se encontra em estágio bastante avançado de desenvolvimento: o lançamento ocorrerá em breve.

UOL Carros visitou o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Nissan, em São José dos Pinhas (PR), onde uma equipe de cinco engenheiros liderou o processo de evolução do modelo até se tornar o carro que todos conhecemos.

O grosso da "gestação" do Kicks foi feito no Japão, onde a Nissan dispõe dos mais avançados centros de desenvolvimento (com túneis de vento, setores de criação de motor etc). Tanto que em 2014, quando o Kicks Concept foi apresentado no Salão de São Paulo, sequer existiam exemplares experimentais rodando por aqui.

Foi só a partir de 2015 que uma estranha mula revestida pela carroceria de um Versa Note passou a ser flagrada com frequência em solo brasileiro. Muito profissional da mídia chegou a especular se o Note seria feito no Brasil, mas não: a função dele era esconder a criação do Kicks. 

Além de nosso país, a montadora realizava testes simultâneos no próprio Japão, nos Estados Unidos e no México. A meta: levar ao mundo um SUV compacto global porém focado em mercados emergentes, tendo o Brasil como prioridade.

Dotado de carroceria esticada (repare nas emendas de solda e na dianteira com grade "enxertada" de outro carro) e bitolas alargadas (a ponto de a marca ter que criar uma "extensão" das caixas de roda), o Versa Note "Frankenstein" indicava que, por dentro, estava escondido um automóvel de dimensões maiores.

"Quando iniciamos os testes com uma mula, já existe uma pré-definição de quase tudo sobre o carro: motor, suspensões, dimensões gerais...", conta Ricardo Abe, gerente de engenharia da Nissan. "No caso do Kicks, por exemplo, já sabíamos que ele teria 20 cm de altura do solo, 0,34 de coeficiente aerodinâmico e 432 litros de volume de porta-malas", acrescenta.

Segundo Abe, acumular quilometragem não é tão importante nessa fase. "O objetivo maior é realizar estudos de dimensões e calibrações iniciais de motor e suspensões", diz. Inteiramente improvisada (veja detalhes no álbum), a cabine conta com dezenas de fios e sensores que servem para realizar medições. Lastros também podem ser espalhados pelo interior, a fim de simular a distribuição de peso do produto final.

Mula do Nissan Kicks com carroceria do Versa Note - Murilo Góes/UOL - Murilo Góes/UOL
Na primeira fase de desenvolvimento de um protótipo, fabricantes usam as chamadas "mulas", que consistem na base do veículo definitivo com a carroceria de outro
Imagem: Murilo Góes/UOL

Estágio 2: protótipos

Essa é a etapa que costuma provocar maior frisson antes do lançamento. Afinal, é quando veículos com carroceria definitiva começam a rodar em diferentes níveis de camuflagem. Quanto maior o nível de confidencialidade e o ineditismo do projeto inédito, mais camuflado o protótipo será. Ele poderá ser "zebrado" com adesivos de "poliondas" ou usar "burcas" com lonas e caixotes.

Por dentro, a cabine também replica quase integralmente as peças a serem usadas no veículo de produção, exceção feita a algumas texturizações de painel. Cada protótipo só sai das fábricas com autorização do diretor da planta, e cada funcionário que dirige o veículo precisa informar quando e quanto rodou em relatório.

Ricardo Abe, gerente de engenharia da Nissan no Brasil - Divulgação - Divulgação
Ricardo Abe, gerente de engenharia da Nissan no Brasil
Imagem: Divulgação
Foi com um exemplar desse estágio que UOL Carros produziu o vídeo que abre a reportagem. 

"Esse é o momento de avaliar a durabilidade das peças e a dinâmica de condução definitiva", relata Abe. Encaixes das peças, isolamento acústico, ergonomia e consumo também são auferidos nesse estágio. Nos testes, os engenheiros precisam considerar variáveis como umidade, relevo, proximidade do mar e mudanças de temperatura.

As equipes chegam a trabalham seis dias por semana em dois turnos. Cada protótipo roda em média 60 mil quilômetros, já levando-se em conta que a quilometragem pode ser artificialmente acelerada em pista fechada, a partir de uma escala de severidade de uso (onde um único quilômetro rodado pode equivaler a 10, 20 ou até 40 quilômetros em condições normais de utilização). Chega-se ao extremo de aglutinar em um mês o nível de desgaste de seis meses normais de utilização.

Durante o processo, diversas modificações são solicitadas. Obviamente já não há mais tempo (nem orçamento) para se trocar um trem-de-força ou a arquitetura das suspensões, mas os engenheiros tentam melhorar ao máximo o conjunto disponível em mãos. Como em todos os outros processos de desenvolvimento, qualquer mudança precisa ser aprovada pela matriz.

Ao fim do ciclo de cada protótipo as fabricantes terão conseguido simular uma rodagem equivalente a 10 anos de uso.

Protótipo do Nissan Kicks - Murilo Góes/UOL - Murilo Góes/UOL
Estágio intermediário já prevê o uso de carroceria definitiva. Famosa camuflagem zebrada serve para esconder traços como dos para-choques, faróis, lanternas e vincos
Imagem: Murilo Góes/UOL

Estágio 3: pré-série

Aqui já temos um carro pronto para ser colocado na linha de montagem, e por isso nem mesmo a camuflagem é tão necessária. Todas as peças dos protótipos dessa etapa são as verdadeiras, já provenientes dos fornecedores locais. "É a validação final da montagem", resume Ricardo Abe.

A principal serventia dos veículos pré-produção não é modificar o carro em si, mas sim promover ajustes na linha de montagem a fim de otimizar tempo, eficiência e qualidade da produção. 

Estágio 4: começo e fim

Chega, então, a hora de levar o carro às ruas. Mais pelo cronograma imposto pela empresa do que pela vontade dos engenheiros. "Enquanto não derem uma data de lançamento, a gente vai querer sempre mexer e aperfeiçoar o projeto", brinca o gerente da Nissan.

"Pode parecer um processo totalmente objetivo, mas também tem muito de subjetivo, do feeling que a gente tem quando roda com os carros em situações reais", descreve Abe.

E o que acontece com os protótipos após o término do projeto? Por terem sido utilizados ao extremo e pela noção de segredo industrial, o destino da maioria acaba sendo a destruição. A Nissan, como poucas empresas, ainda tem alguma noção de história e preserva alguns exemplares em museu, mas isso é decisão da matriz, não da filial brasileira.

No caso dos três modelos exibidos aqui, é provável que o "Versa Note Frankenstein" e o "Kicks zebrinha" já não existam mais quando você estiver lendo esta reportagem -- ambos estavam programados para ser destruídos poucos dias depois de nossa visita. Que descansem em paz!

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