Topo

Mais elaborada, "receita de carro" permite fazer mais gastando menos

Eugênio Augusto Brito<br>André Deliberato

Do UOL, em São Paulo (SP)

21/05/2014 10h52

Em uma leitura rápida, as palavras "plataforma" e "arquitetura" podem até parecer deslocadas dentro do universo automotivo para quem não está por dentro de nuances mais técnicas, mas são fundamentais para entender cada movimento dessa indústria. Ambas tratam da mesma noção: a base de construção de cada modelo (podendo ser ampliada até para componentes-chave, como motores e câmbios) produzidos por uma montadora, que pode ser entendida como a "receita de bolo" para se fazer carros.

Mas diferente do que se entendia há até menos de uma década, plataforma não precisa ser sinônimo de chassis: atualmente, é possível que carros com bases físicas bem diferentes tenham uma mesma origem. UOL Carros bolou o "Jogo das Plataformas" que lida tanto com a noção anterior, quanto com a mais atual: são dez carros (alguns antigos, outros recentes) e a tarefa do leitor é ligar os pares feitos sobre a mesma base.

FAÇA MAIS, GASTE POUCO
Mas vamos falar mais sobre plataformas. Para começar, dois exemplos -- um para o "bem", outro para o "mal" (entre aspas, mesmo, já que estas noções são apenas ilustrativas) -- de notícias vistas aqui em UOL Carros sobre fabricantes nacionais:

- Surge o primeiro flagra do Versa nacional; conheça-o: logo na sequência do lançamento do hatch compacto March nacionalizado e reestilizado (chamado de New March, em oposição ao March original importado do México), UOL Carros recebeu o flagrante do leitor Felipe Edson Costa de uma unidade do novo Versa, sedã que chega ainda este ano também feito aqui no Brasil e com visual atual.   

- GM chama 238.360 carros de dez modelos por risco de incêndio: o mais recente recall da marca Chevrolet trata de falha na válvula de combustível de modelos bem diferentes, do hatch pequeno Onix ao sedã médio Cruze, passando pelos argentinos Classic e Agile.

O ponto em comum dos dois fatos está no conceito de plataforma. Com uma mesma receita -- algo mais para uma série de instruções do que para um chassis, como se pensava antigamente --, as montadoras conseguem usar maquinários, matérias-primas e componentes mais sofisticados de um modo específico para fazer diferentes carros, de diferentes configurações.

Nissan New March - Murilo Góes/UOL - Murilo Góes/UOL
V de versátil: Nissan faz de New March a Versa...
Imagem: Murilo Góes/UOL
A Nissan usa a chamada plataforma V para fazer modelos menores, como o March (um dois volumes) e o Versa (um três-volumes com excelente espaço interno). É bom reparar que além de estilos e usos diferentes, hatch e sedã diferem até no espaço interno para passageiros: o primeiro tem 2,45 metros de entre-eixos, enquanto o último entrega 2,60 m.

É curioso, ainda, notar que a plataforma V (que dá origem ainda a diferentes modelos da marca no exterior) dialoga com bases de modelos de outras montadoras do mesmo grupo, caso da Renault (com a plataforma B, do Clio europeu e do SUVinho Captur) e da B0 atualizada da Dacia (que permite fazer os novos Logan e Sandero -- a nova geração do hatch vai estrear em breve no país, aliás -- bem como o Duster).

Renault Clio IV R.S. é apresentado no Salão de Paris 2012 - ERIC PIERMONT/AFP - ERIC PIERMONT/AFP
... enquanto Renault constrói seu Clio europeu sobre base muito similar.
Imagem: ERIC PIERMONT/AFP
Este parentesco ajuda a entender porque temos novidades de carros conhecidos da Nissan e da Renault pipocando e grandes chances de receber carros considerados "impossíveis" até pouco tempo, caso dos modelos europeus da Renault. Uma vez que as fábricas locais "aprendem" o modo de fazer, viabiliza-se a produção e mesmo a importação (é preciso saber como fazer para poder adaptar ou reparar).

Na GM, o pensamento é semelhante. A gigante conheceu o fundo do poço em 2008: com carros envelhecidos e pouca representatividade em termos de inovação, viu a matriz quebrar e teve de se reinventar. Umas das soluções adotadas foi a de produzir carros de diferentes segmentos da forma mais optimizada possível, ao menor custo. No Brasil, vimos quatro movimentos:

1) Uma primeira leva de carros "novos" -- ao menos externamente -- feitos sobre uma modificação da antiga plataforma do europeu Opel Corsa B (GM4200), que por aqui deu origem ao nosso primeiro Corsa -- muitos devem se lembrar de suas variações sedã, perua e até de um cupê esportivado (o Tigra) -- e que passou a gerar o sedã Classic e os inéditos Agile (hatch altinho) e nova Montana (picape compacta).

Chevrolet Cruze e Malibu reestilizados em Detroit - Carlos Osorio/AP - Carlos Osorio/AP
Cruze foi primeiro carro global da GM moderna
Imagem: Carlos Osorio/AP
2) A estreia de um modelo inédito para o segmento de médios, o Cruze, primeiro como sedã e depois como hatch. Criado na Coreia do Sul, o Cruze é o verdadeiro carro global da GM: aposentou a velha arquitetura Opel (Monza, Vectra) no Brasil, ao passo em que passou a ser vendido também na China, Europa e Estados Unidos. Atualmente, é o carro mais vendido da marca em todo o mundo.

3) A estreia de uma família compacta, feita sobre uma evolução da plataforma europeia Delta II. Com a mesma base, a GM criou Onix (hatch compacto), novo Prisma (sua versão sedã), Spin (monovolume), Cobalt (sedã compacto com mais espaço) e até um SUV, o Tracker (que é vendido nos Estados Unidos e China como Buick Encore, no Canadá e México como Chevrolet Trax e na Europa como Opel Mokka).

4) Houve ainda a renovação dos utilitários S10 e Blazer (agora Trailblazer), que passaram a usar base tailandesa e subiram de cotação a ponto dos Estados Unidos cogitarem a venda da picape média por lá.

Se a multiplicação rápida e "barata" de carros sobre poucas plataformas permitiu que a GM renovasse seu portfólio em pouquíssimo tempo, há a contrapartida negativa da possibilidade de uma falha de fabricação de uma única peça (própria ou de terceiro) levar a convocações gigantes, como esta vista no Brasil -- ou como uma das 24 falhas enormes e até graves que ocorrem agora nos EUA.

GM convoca Classic, Cobalt, Montana e Spin por risco de incêndio - Fabio Braga/Folhapress - Fabio Braga/Folhapress
De um lado, Montana, Classic e Agile; de outro, de Onix a Cobalt -- muitos carros, duas plataformas e uma marca renovada
Imagem: Fabio Braga/Folhapress

MENOS TRABALHO, MAIS GANHO
Falamos em carro global da GM, mas todas as marcas buscam o mesmo uso para a plataforma: carro único (ou gasto único, com a plataforma comum), mercados diferentes.

Como o mundo atual traz maiores desafios para se obter recurso e maior competitividade, praticamente todas os grandes grupos de fabricantes de carros perceberam que a saída é diversificar ao máximo suas linhas, sem abrir mão da eficiência (leia-se "gastando o mínimo possível"). Se a equação for perfeita, os lucros tendem a surgir e nisso apostam, por exemplo, Volkswagen, Mercedes-Benz e a recém formada Fiat-Chrysler (FCA).

A mais nova aliança já traçou a metas ambiciosas até 2018 e vem dando novo fôlego a marcas como Chrysler, Jeep e Alfa Romeo com poucas bases: uma arquitetura europeia (Alfa Romeo e Lancia) média dá origem a modelos da Fiat na Ásia (e, espera-se, no Brasil), da marca Dodge nos Estados Unidos; outra base compacta europeia fará o primeiro SUVinho Jeep fabricado na unidade pernambucana da Fiat.

Alemães da Mercedes esperam liderar o mercado global de luxuosos alcançando sucesso em mercados primordiais: China ("dominada" pela rival Audi), América do Sul (sobretudo Brasil) e Estados Unidos. A chave está na adoção de carros menores, mais em conta e mais fáceis de se dirigir (tração dianteira), mas não menos sofisticados: a chamada família compacta (na verdade, médios) dos novos Classe A, Classe B, dos inéditos CLA (sedã) e GLA (SUV) e de um modelo ainda misterioso é toda fabricada sobre a mais recente plataforma da marca. Destes, o GLA está confirmado para o Brasil, mas qualquer modelo poderia ser fabricado aqui, uma vez que a receita é a mesma.

Mercedes-Benz Classe A200 Urban - Murilo Góes/UOL - Murilo Góes/UOL
Classe A (foto), CLA, GLA, Classe B... uma base para vender muitos carros
Imagem: Murilo Góes/UOL

Além desta base compacta, a Mercedes espera ainda otimizar processos e reduzir o total de plataformas das quase dez atuais para menos de cinco. A mais importante, mais até que a compacta, seguirá sendo a do novo Classe C, que também será reproduzido aqui no Brasil.

Por fim, usamos o exemplo do grupo Volkswagen e seu planejamento de ser a maior fabricante de carros do planeta em 2018. Como? Com menos custo e mais entrega de modelos. O "passe de mágica" vem da chamada MQB (matriz modular [de motor] transversal, em alemão), que é praticamente um Lego automotivo.

Plataforma MQB - Divulgação - Divulgação
A "mágica" da plataforma MQB: quase tudo é variável
Imagem: Divulgação

Apenas uma instrução é fixa: a distância e uso de componentes entre o centro da roda dianteira e o começo do habitáculo do carro. Como todo o restante pode variar, é possível fazer diferentes famílias médio-compactas, médias e até grandes com os mesmos recursos. O resultado são carros de diferentes marcas, para diferentes públicos, com preços variados, mas todos apresentando as mesmas soluções -- inclusive de conforto e segurança, antes consideradas caras demais para uso amplo. 

Com esta solução, a marca pode fazer -- de fato -- do best seller Golf (carro "popular" na Europa) ao mais refinado Audi A3, chegando até mesmo a esportivos como o novo TT, ou modelos mais sisudos como substituto do Passat atual e todas as suas variações de (peruas, crossover, SUV) com gasto reduzido e oferecendo recursos inovadores tanto para o consumidor de uma ponta (a do acesso), quanto para o de outra (a que espera por todas as novidades).

Como o gasto cai e o lucro sobe, é possível fechar a conta até mesmo para permitir que mercados como o Brasil voltem a vender e -- no futuro -- até fabricar carros atuais. Se o cenário anterior transformou o Audi em importado para poucos e o Golf no arremedo de gerações anteriores (apelidado de 4,5), o novo prevê Golf 7 e o Audi A3 nacionais, feitos no Paraná. É mesmo uma receita campeã.