Topo

Mundo "descobre" que carro brasileiro é inseguro; custo não é desculpa, diz NCAP

O caso Ka: resgate de vítimas de acidente com Ford Ka em São Paulo, em novembro de 2012, ilustra reportagem da AP reproduzida pelo jornal Detroit News. Texto aponta que hatch subcompacto europeu obteve quatro estrelas no Euro NCAP, enquanto a versão nacional ficou com apenas uma estrela no teste latino -- carros, porém, são de gerações e plataformas diferentes, favorecendo defesa da fabricante - Victor R. Caivano/AP
O caso Ka: resgate de vítimas de acidente com Ford Ka em São Paulo, em novembro de 2012, ilustra reportagem da AP reproduzida pelo jornal Detroit News. Texto aponta que hatch subcompacto europeu obteve quatro estrelas no Euro NCAP, enquanto a versão nacional ficou com apenas uma estrela no teste latino -- carros, porém, são de gerações e plataformas diferentes, favorecendo defesa da fabricante Imagem: Victor R. Caivano/AP

Eugênio Augusto Brito

Do UOL, em São Paulo (SP)

13/05/2013 18h57Atualizada em 13/05/2013 19h40

Neste domingo (12), enquanto boa parte dos brasileiros celebrava o Dia das Mães e/ou acompanhava, na TV ou nos estádios, a decisão dos campeonatos estaduais de futebol, a imprensa internacional descobriu, reproduzindo texto da agência AP (Associated Press), que o carro feito e vendido no Brasil é inseguro.

Na reportagem, assinada por Bradley Brooks e intitulada "Carros fabricados no Brasil são mortais", dados sobre vendas crescentes de carros de passeio no país (puxadas pela "nova classe média", segundo o autor), números sobre acidentes de trânsito (com mortos e feridos) do Ministério da Saúde e da própria AP e resultados das três edições do Latin NCAP (a versão local do programa independente de segurança automotiva) são comparados para se chegar a um resultado já apontado por UOL Carros: carros feitos no Brasil não atendem minimamente a requisitos internacionais de segurança, ainda que suas versões fabricadas e vendidas no exterior (nos casos aplicáveis) se saiam bem.

Esta conclusão da reportagem da AP não traz novidade em si, ainda que apenas agora o mercado desenvolvido pareça ter acordado à realidade  dos mercados emergentes. Ela é, de fato, similar àquela apontada anteriormente, em novembro de 2012, pelo Latin NCAP. De acordo com os organizadores do programa de segurança para Brasil e América Latina, "os carros mais populares estão 20 anos atrasados em comparação aos dos países industrializados, e abaixo dos padrões globais" (releia aqui a reportagem).

Na ocasião, UOL Carros ressaltou a medíocre condição de segurança de modelos fabricados no Brasil com o exemplo do Renault Sandero: produzido no Paraná, o hatch obteve apenas uma estrela no teste de impacto, enquanto o modelo original, o Sandero feito pela romena Dacia, obteve em 2008 (ano de seu lançamento) três estrelas em segurança geral e quatro para crianças, no Euro NCAP.

Em carros mais instáveis e menos seguros, cresce o perigo para motoristas e ocupantes, lembra também o texto da AP: "Carros com estrutura mais fraca e coluna de direção frágil propiciam o choque do volante contra o peito e abdômen do motorista em colisões frontais, a forma mais comum e mortal de trauma, causando sérios danos aos órgãos vitais". Além disso, a reportagem aponta que peças e pedaços de painéis mal construídos "flutuam" no interior da cabine após a colisão e podem se converter em projéteis perigosos, ferindo gravemente os ocupantes.

  • Latin NCAP/Divulgação

    Sandero básico brasileira, sem airbags, é mais inseguro que o similar romeno, da Dacia

CLIMA DE GUERRA
De acordo com os dados da reportagem, que aponta o Ministério da Saúde como fonte, 9.059 ocupantes de carros (motoristas e/ou passageiros) morreram em acidentes de trânsito no Brasil em 2010. Nos Estados Unidos, no mesmo período e nas mesmas condições, o total de mortes chegou a 12.435 -- o texto faz ressalva de que a frota circulante norte-americana era cinco vezes maior que a brasileira no período.

"Na verdade, os dois países seguem em direções opostas no que diz respeito às taxas de morte -- os Estados Unidos registraram 40% menos mortes em acidentes de carro em 2010, na comparação com a década anterior. No Brasil , o número de mortos subiu 72%, de acordo com os últimos dados disponíveis [do Ministério da Saúde]", relata Brooks em sua reportagem.

Distribuído por uma agência jornalística internacional de renome, o texto de Brooks foi reproduzido por veículos americanos (como os jornais The New York Times, Detroit News (leia o texto em inglês aqui), Boston Herald e Seattle Times, e a rede de TV NBC), europeus (como o jornal Guardian, da Inglaterra) e até da Oceania. Brooks, que é responsável pela sucursal da agência AP no Brasil, afirma que a mistura de carros inseguros com condições perigosas de condução resulta em uma taxa de mortalidade em acidentes automotivos brasileiros quatro vezes maior que a média americana.

DE QUEM É A CULPA
Ainda de acordo com o relato de Brooks, que cita ter ouvido engenheiros e médicos, entre outros especialistas, os culpados pelo que chamou de "tragédia nacional" são os carros produzidos em território brasileiro com "soldas mais fracas, itens de segurança escassos e materiais de qualidade inferior, quando comparados com modelos similares fabricados para os consumidores americanos e europeus".

Em fevereiro, UOL Carros publicou artigo do jornalista Pedro Kutney, editor do portal Automotive Business, que já comparava as quase 40 mil mortes anuais -- cálculo que inclui também pedestres, motociclistas e outras vítimas externas aos veículos acidentados -- a índices de uma "guerra não declarada", cujas baixas poderiam ser evitadas com o uso maior de aparatos de segurança já a partir dos carros mais baratos (os mais vendidos).

"A começar por cintos de segurança mais eficientes -- triviais, mas que se tornaram obrigatórios em todos os veículos vendidos no Brasil apenas em 1984. Mesmo assim, a maioria da frota atual do país sequer tem pré-tensionador, numa grave redução da proteção passiva para economizar nos custos de produção", afirmava Kutney três meses atrás, no texto intitulado "No Brasil, itens de segurança no carro ainda são artigo de luxo" (que pode ser relido aqui).

Claro, carros não se produzem autonomamente. Assim, a responsabilidade por modelos de pior qualidade e segurança, ainda que caros, é das fabricantes, que no Brasil são estrangeiras em sua totalidade. Segundo a reportagem da AP, a justificativa é o corte de custos, ainda que as margens de lucros sejam maiores por aqui. "As fabricantes obtêm até 10% de lucro sobre os carros fabricados no Brasil, em comparação aos 3% [obtidos] nos EUA e à média global de 5%, segundo a IHS Automotive, uma empresa de consultoria do setor automotivo", aponta Brooks.

  • Reprodução

    Módulo de airbag para motorista e passageiro custa US$ 70 para fabricante, mas brasileiro ainda tem de desembolsar até US$ 1 mil (R$ 2 mil) para ter o equipamento em seu carro

Mesmo assim, e apesar das obrigações estabelecidas por lei, a questão do custo é sempre colocada como entrave para o deslanche de normas de segurança no Brasil. De acordo com o artigo de Kutney, publicado em fevereiro, apenas 23% dos carros novos vendidos no país em 2010 estavam equipados com ABS (freios antiblocantes), sendo que apenas 4% eram de modelos chamados "populares", mais baratos. Em um mercado "sensível a preços", segundo Kutney, o valor cobrado pelo kit de freios com ABS e airbags frontais -- atualmente em torno de US$ 1 mil (R$ 2 mil), podendo baixar para US$ 500 (R$ 1 mil) nos próximos anos -- ainda é um impedimento crucial.

NCAP: CUSTO NÃO É DESCULPA
Vale lembrar que estes valores estão muito acima dos preços pagos pelas montadoras de carros aos fornecedores (as fabricantes de autopeças). UOL Carros conversou há duas semanas com o uruguaio Alejandro Furas, diretor técnico dos programas globais do padrão NCAP (Euro NCAP e Latin NCAP, entre outros), que foi categórico: "Custo não é, nem deveria ser jamais, a justificativa, uma vez que o valor do módulo de airbag completo [para motorista e passageiro] e instalado é de US$ 70 [menos de R$ 150] para o fabricante".

  • Divulgação

    Alejandro Furas, diretor-técnico do NCAP

A reportagem da AP, que também ouviu o diretor do NCAP (sigla de New Car Assessment Program, algo como "programa de avaliação de carros novos), aponta que, com até 40 milhões de novos consumidores entrando no mercado em geral, cresce também a venda de carros zero-quilômetro, inclusive de modelos considerados inseguros pelos testes do Latin NCAP e que mesmo assim figuram no topo do ranking.

Além do Sandero, são citados Fiat Uno ("estrutura instável e apenas uma estrela"), Chevrolet Celta ("quinto colocado em vendas durante todo o ano passado, recebeu uma estrela após ter a porta deslocada e o teto vincado durante a teste de colisão"), Ford Ka ("o hatchback Ka vendido na Europa recebeu quatro estrelas, quando testado em 2008; sua versão latino-americana obteve apenas uma") e Volkswagen Gol ("Gol e Polo têm estruturas estáveis... mas a Volkswagen não respondeu à pergunta sobre quantos de seus consumidores pedem airbags em seus carros").

Na entrevista concedida à nossa reportagem, porém, Furas afirmou que a culpa nunca deve ser repassada ao comprador, na verdade vítima sob qualquer ponto de vista. "O consumidor brasileiro não está acostumado a comprar carro usando a segurança como critério, mas não se pode culpá-lo, uma vez que do modelo básico e pelado ao topo da gama, já equipado com itens de segurança, a diferença de valores pagos pode variar entre 25% e 30%", diz o diretor do NCAP a UOL Carros.

Esta culpa deve recair sempre sobre a montadora, ainda que possa ser dividida com o governo e com órgãos de trânsito, que no Brasil se omitem da obrigação de fiscalizar as condições de segurança dos veículos produzidos -- a ponto de sequer manterem um laboratório público de testes em território nacional, situação indicada pelo texto do AP e confirmada a UOL Carros por Furas. "Mesmo na Europa, onde os preços são mais justos, o consumidor não cobra segurança, obrigação que é do governo e das autoridades do sistema viário. No Brasil, como o Governo não cuida disso, as montadoras são negligentes e o consumidor fica sem ação", conclui.

PASSADO E PRESENTE

  • AFP


    A projeção de que 51 mil pessoas morreriam em decorrência de acidentes de carros por todo o país foi atingida com uma década de antecedência.

    A afirmação acima não se refere ao Brasil e nem aos tempos atuais. Escrita em 1965, diz respeito aos Estados Unidos e abre o livro "Unsafe at Any Speed" (Inseguro a qualquer velocidade, numa tradução direta), do advogado Ralph Nader.

    Em pouco mais de 290 páginas, Nader compilou casos que iam da mera indiferença à total negligência com a segurança de condutores e passageiros por parte das grandes fabricantes norte-americanas da época: GM, Ford, Chrysler e American Motors (AMC).

    Para leitores brasileiros, fica a curiosidade de acompanhar uma situação análoga àquela vivida em nosso país nos dias atuais. Sem legislação específica e sem cobrança do governo, a questão de segurança dos carros americanos era determinada apenas pela boa vontade das fabricantes (ou falta de vontade, no relato de Nader): projetos modificados no último instante por contenção de custos implicavam em carros instáveis, itens de segurança eram vendidos na forma de itens opcionais e acessórios a preço de ouro, casos pontuais acabavam resolvidos com acordos na Justiça para evitar a decisão do júri e a publicação da história.

    A mudança só veio com a cobrança da mídia, do público e, por fim, do governo, com a criação de órgãos de controle da segurança de veículos e estradas. Nader foi artífice do processo e tornou-se célebre à frente de instituições de defesa do consumidor -- atualmente, o advogado é conhecido pela atuação política e chegou a concorrer à presidência dos EUA. O livro, porém, não teve edição local -- ainda que a edição original possa ser encontrada em sebos -- e está fora de circulação também nos EUA, onde sequer existe versão em e-book. (EAB)